segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

O PORCO DE ERIMANTO

Um coração doente é o melhor tesouro que um homem pode ambicionar. Bem sei que eles acham que não. Ainda ontem esteve um deles a falar na televisão: que estamos em Maio, que Maio é o mês do coração, que é preciso olharmos pelo coração, vigiar o peso, fazer exercício, não fumar… Tretas! O que eles querem dessa forma é despojar-nos de uma das nossas maiores riquezas, que é a morte rápida, oportuna e inopinada, provocada por um enfarte, para nos entregar de mão beijada à morte lenta, preenchida de dores, provocada por algum cancro ou coisa assim. Ou, se calhar ainda pior, à vida puramente vegetativa do mal de Alzheimer. Achas que ganhamos com a troca? Hã? Quem aceitará morrer às dentadas de um cão rafeiro, podendo morrer arrebatado por uma águia-real?

Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco 2011.
Plano Nacional de Leitura: livro recomendado para o Ensino Secundário como sugestão de leitura.

«Nove fábulas sobre a doença e a mortalidade, e uma alegoria monstruosa. 

Um autodidacta torna-se historiador emérito. Mas a História é um domínio demasiado vasto. Especializa-se então na História da civilização grega. Depois, em mitologia grega. Depois, mais especificamente, nos trabalhos de Hércules. E destes, especializa-se na questão do javali de Erimanto. Tem uma sede de conhecimento insaciável, uma febre da especialização indomável. Em consequência disso, o homem que sabe tudo sobre o javali de Erimanto vai-se tornando num javali. O processo de "suinificação", com todos os horrores de uma metamorfose, é a apoteose do conhecimento. Transforma-se o amador na coisa amada, e o espectáculo é deprimente.

Esta é a mais sintética fábula de "O Porco de Erimanto", colectânea de dez contos de A.M. Pires Cabral. Autor prolífico, a sua actividade de contista foi mais produtiva em meados dos anos 80, com "O Diabo Veio ao Enterro", "Memórias de Caça" e "O Homem que Vendeu a Cabeça"; "O Porco de Erimanto" é uma versão revista e aumentada deste último título. São dez as fábulas, geralmente de cunho fantástico, algumas divertidas, outras francamente assustadoras.
Há um funcionário com fumos de poeta, alojado numa pensão estadonovista, que vê a sua sanidade mental em perigo por causa de um misterioso buraco na parede. Um homem que vende a cabeça à ciência. Outro que luta com a sua sombra. Um desgraçado que ultrapassa um desgosto amoroso com ataques de incontinência urinária. Pires Cabral confunde de propósito a fisiologia e a psicologia, de modo que nunca sabemos o que é natural ou patológico, o que é absurdo ou lógico. Alguns destes sujeitos são vítimas de partidas, outros nasceram sob estrela funesta, mas todos vivem em constante angústia.

Duas ou três histórias têm um cunho mais divertido, como aquela em que o director de uma escola se arroga o direito de inspecções sanitárias intrusivas, numa sátira à ditadura e aos legalismos burocráticos em geral. Mas outros momentos são de puro terror. Não deve haver em português nenhum texto sobre o cancro tão perturbador como "Desidério". Tudo começa com a descoberta de um quisto nas costas do protagonista. Mas aquele sinal, uma excrescência que podia ser rapidamente removida, vai ficando, vai dominando a vida do seu portador, que com ele cria uma relação íntima, umbilical, quase de ternura. Pires Cabral chama ao cancro uma "autofagia", porque é uma doença que nos consome por dentro. E depois descreve em detalhe esses medos e devastações. Não são páginas sentimentais. É uma monstruosa alegoria que lembra Ballard: "É então fabricada uma réplica exacta de cada autófago, de material sintético, que não só é perfeitamente comestível como reproduz o sabor da carne humana e contém um alto teor proteínico. Tais réplicas são colocadas à disposição de cada doente, nos seus aposentos. E então os doentes vão-nas consumindo à medida dos seus impulsos". E continua: "Fala-se de certos efeitos secundários desagradáveis, entre os quais a tendência para uma progressiva transformação da autofagia em antropofagia. Mas nada se provou ainda. E os autófagos ricos podem devorar-se em efígie (...)" (p. 196).

Em todos estes contos há intimações de mortalidade, vistas com uma frieza sarcástica mas não despojada de humanidade; mas, com "Desidério", A.M. Pires Cabral escreveu uma aterradora transposição da mais inominável das doenças contemporâneas, a mais activa forma actual da nossa finitude. O caranguejo trespassado por uma lança é a imagem que abre as portas ao delírio imaginativo, à fábula pavorosa, à doença como condição humana essencial: "Cada qual deve acalentar dentro de si uma doença. Mens sana in corpore sano - para quê?!... Devemos é ter dentro de nós um relógio que nos lembre periodicamente quia pluvius sumus, que temos tributos a pagar à mecânica da carne. E que cada um pague na moeda de que dispuser. (...) Por isso eu digo: a cada um sua moléstia" (p. 178). Não é só a escrita impecável que nos agarra nestas fábulas: é não podermos fingir que não é nada connosco.»
Pedro Mexia, Ípsilon – Público
                                                    Foto: “O Porco de Erimanto” de A.M. Pires Cabral

Um coração doente é o melhor tesouro que um homem pode ambicionar. Bem sei que eles acham que não. Ainda ontem esteve um deles a falar na televisão: que estamos em Maio, que Maio é o mês do coração, que é preciso olharmos pelo coração, vigiar o peso, fazer exercício, não fumar… Tretas! O que eles querem dessa forma é despojar-nos de uma das nossas maiores riquezas, que é a morte rápida, oportuna e inopinada, provocada por um enfarte, para nos entregar de mão beijada à morte lenta, preenchida de dores, provocada por algum cancro ou coisa assim. Ou, se calhar ainda pior, à vida puramente vegetativa do mal de Alzheimer. Achas que ganhamos com a troca? Hã? Quem aceitará morrer às dentadas de um cão rafeiro, podendo morrer arrebatado por uma águia-real?

Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco 2011.
Plano Nacional de Leitura: livro recomendado para o Ensino Secundário como sugestão de leitura.

«Nove fábulas sobre a doença e a mortalidade, e uma alegoria monstruosa. 

Um autodidacta torna-se historiador emérito. Mas a História é um domínio demasiado vasto. Especializa-se então na História da civilização grega. Depois, em mitologia grega. Depois, mais especificamente, nos trabalhos de Hércules. E destes, especializa-se na questão do javali de Erimanto. Tem uma sede de conhecimento insaciável, uma febre da especialização indomável. Em consequência disso, o homem que sabe tudo sobre o javali de Erimanto vai-se tornando num javali. O processo de "suinificação", com todos os horrores de uma metamorfose, é a apoteose do conhecimento. Transforma-se o amador na coisa amada, e o espectáculo é deprimente.

Esta é a mais sintética fábula de "O Porco de Erimanto", colectânea de dez contos de A.M. Pires Cabral. Autor prolífico, a sua actividade de contista foi mais produtiva em meados dos anos 80, com "O Diabo Veio ao Enterro", "Memórias de Caça" e "O Homem que Vendeu a Cabeça"; "O Porco de Erimanto" é uma versão revista e aumentada deste último título. São dez as fábulas, geralmente de cunho fantástico, algumas divertidas, outras francamente assustadoras.
Há um funcionário com fumos de poeta, alojado numa pensão estadonovista, que vê a sua sanidade mental em perigo por causa de um misterioso buraco na parede. Um homem que vende a cabeça à ciência. Outro que luta com a sua sombra. Um desgraçado que ultrapassa um desgosto amoroso com ataques de incontinência urinária. Pires Cabral confunde de propósito a fisiologia e a psicologia, de modo que nunca sabemos o que é natural ou patológico, o que é absurdo ou lógico. Alguns destes sujeitos são vítimas de partidas, outros nasceram sob estrela funesta, mas todos vivem em constante angústia.

Duas ou três histórias têm um cunho mais divertido, como aquela em que o director de uma escola se arroga o direito de inspecções sanitárias intrusivas, numa sátira à ditadura e aos legalismos burocráticos em geral. Mas outros momentos são de puro terror. Não deve haver em português nenhum texto sobre o cancro tão perturbador como "Desidério". Tudo começa com a descoberta de um quisto nas costas do protagonista. Mas aquele sinal, uma excrescência que podia ser rapidamente removida, vai ficando, vai dominando a vida do seu portador, que com ele cria uma relação íntima, umbilical, quase de ternura. Pires Cabral chama ao cancro uma "autofagia", porque é uma doença que nos consome por dentro. E depois descreve em detalhe esses medos e devastações. Não são páginas sentimentais. É uma monstruosa alegoria que lembra Ballard: "É então fabricada uma réplica exacta de cada autófago, de material sintético, que não só é perfeitamente comestível como reproduz o sabor da carne humana e contém um alto teor proteínico. Tais réplicas são colocadas à disposição de cada doente, nos seus aposentos. E então os doentes vão-nas consumindo à medida dos seus impulsos". E continua: "Fala-se de certos efeitos secundários desagradáveis, entre os quais a tendência para uma progressiva transformação da autofagia em antropofagia. Mas nada se provou ainda. E os autófagos ricos podem devorar-se em efígie (...)" (p. 196).

Em todos estes contos há intimações de mortalidade, vistas com uma frieza sarcástica mas não despojada de humanidade; mas, com "Desidério", A.M. Pires Cabral escreveu uma aterradora transposição da mais inominável das doenças contemporâneas, a mais activa forma actual da nossa finitude. O caranguejo trespassado por uma lança é a imagem que abre as portas ao delírio imaginativo, à fábula pavorosa, à doença como condição humana essencial: "Cada qual deve acalentar dentro de si uma doença. Mens sana in corpore sano - para quê?!... Devemos é ter dentro de nós um relógio que nos lembre periodicamente quia pluvius sumus, que temos tributos a pagar à mecânica da carne. E que cada um pague na moeda de que dispuser. (...) Por isso eu digo: a cada um sua moléstia" (p. 178). Não é só a escrita impecável que nos agarra nestas fábulas: é não podermos fingir que não é nada connosco.»
Pedro Mexia, Ípsilon – Público

Disponível na Traga-Mundos – livros e vinhos, coisas e loisas do Douro em Vila Real... | Traga-Mundos – lhibros i binos, cousas i lhoisas de l Douro an Bila Rial...
[também do autor os títulos: “O Cónego”e “A Loba e o Rouxinol” (romance); “O Diabo Veio Ao Enterro”, “O Porco de Erimanto” e “Os Anjos Nús” (contos); “Que Comboio É Este”, “Arado”, “Antes Que O Rio Seque” e “Cobra-D’Água” (poesia); “Trocas e Baldrocas ou com a natureza não se brinca” com ilustrações de Paulo Araújo (infanto-juvenil); “Língua Charra – Regionalismos de Trás-os-Montes e Alto Douro” Volume I – A-E, 568 p. e Volume II – F-Z, 606 p.;  “Páginas de Caça na Literatura de Trás-os-Montes” (selecção de textos e organização, antologia); “Aqui e Agora Assumir o Nordeste” (antologia) selecção e organização de Isabel Alves e Hercília Agarez; “As Águas do Douro” coordenação Gaspar Martins Pereira, “Telhados de Vidro” n.º 18]

CRÓNICAS DA CADEIA

                                     


CRÓNICAS DA CADEIA 

Autores: Vítor Ilharco (texto), Fernando Jorge (ilustrações)
Local de Edição: CoimbraEditor: Coimbra Editora
Editado em: Janeiro - 2014208 págs.
€ 20,14 € 18,13


Local de Edição: CoimbraEditor: Coimbra EditoraJaneiro - 2014 A Coimbra Editora solidarizou-se com a APAR - Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso, promovendo a publicação desta obra, onde se reuniram crónicas de Vitor Ilharco, ilustradas por Fernando Jorge.

A receita líquida da venda de “Crónicas da Cadeia” reverte integralmente para a APAR.




Sempre que um cidadão é apanhado pela Justiça cometendo um acto transgressor e grave das normas estabelecidas numa determinada sociedade, vai para a prisão. Enfim, mais ou menos… Dela, cada um de nós, desenha a ideia de uma casa onde o Estado põe o dito cidadão a marinar até que este esteja “preparado para ser reinserido” na dita. “A ver se se emenda, senhor fulano…” Nada mais falso! Ainda que dito muitas vezes até pareça verdade, facto é que ninguém sai melhor do que entrou na prisão! Mas não é sobre isso que aqui venho. Até porque em Portugal não há prisões, outrossim, há estabelecimentos prisionais, o que desde logo, marca toda a diferença…

Certo é que os que por lá passam não são os que violaram a Lei, mas apenas os que foram apanhados nas malhas desta. Como todos sabemos, dependendo do dia, do combustível disponível na esquadra, do despacho e de outros imponderáveis que agora não vêm ao caso. Até porque malhas, há-as para todos os feitios. Limpinho como água é que de prisões, os legisladores, que lhes outorgam definições, nada sabem, os governantes, que lhes impõem regras de funcionamento, nunca viram, e os outros, presos, guardas, técnicos e funcionários, desenrascam-se, cada um a seu modo e de modo a que “passe depressa”. Lá dentro, garantidamente e apenas, Gente como nós. E portanto, Gente que pensa, que ri, que chora e que sente e vive à medida que o tempo e o modo ditados permitem.

O que o leitor aqui vai ler e encontrar, salvaguardados os caricatos, são factos ou ditos de quem sobrevive à vida e ao modo que cada um escolheu ou teve em sorte. Mas de novo e apenas, Gente como nós. Todos peroramos teoria sobre a forma como deveria ser a prisão. Mas lá, nesse outro universo onde todos se amontoam de razões a marinar, a vida, apesar de diferente, estranha e até contra natura, é apenas e ainda assim, apenas vivida por seres humanos.

Técnicos, guardas e presos. É disso que bastas vezes nos esquecemos.

Na prisão, mora apenas Gente.

In prefácio
Hernâni Carvalho