A minha biblioteca de livros sobre escrita e guionismo inclui várias dezenas de obras, que fui coleccionando e estudando desde que adquiri oScreenplay – The Foundations of Screenwriting de Syd Field numa pequena livraria especializada em cinema, em Los Angeles, há mais de duas décadas.
Esses livros têm constituído parte importante da minha formação como guionista e autor. O Manual de Guionismo, do autor e professor universitário João de Mancelos, é uma das adições mais recentes, que eu não poderia deixar de referir.
Dois mercados, duas medidas
Há um grande défice editorial de livros em língua portuguesa sobre escrita para cinema, especialmente em Portugal. No Brasil ainda se vão encontrando traduções de muitos textos importantes, como o referido Screenplay, editado pela Arte & Letra como Roteiro – Os Fundamentos do Roteirismo, ou o mais recente e muito citado Story. Infelizmente, deste lado do Atlântico as opções são muito mais reduzidas.
Esta discrepância é ainda mais evidente se reduzirmos a análise a livros de autores originais de língua portuguesa. Há algumas – não muitas – obras de autores brasileiros, das quais destacaria o clássico Da criação ao roteiro de Doc Comparato (um dos primeiros livros que li nesta área), ou o mais recente Manual de Roteiro, ou Manuel, o primo pobre dos Manuais de roteiro para Cinema e TV de Leandro Saraiva e Newton Cannito. Mas até há pouco tempo não haviam obras sobre guionismo de autores portugueses (pelo menos que eu saiba; por favor corrija-me se estiver errado). João de Mancelos viu essa lacuna e, ao fim de dois anos de trabalho, colmatou-a com o seu Manual de Guionismo.
Um Manual para os nossos dias
Eu já tinha referido o Manual de Guionismo aqui no blogue na altura da sua edição, mesmo sem o ter lido. Procurei-o várias vezes em livrarias mas nunca tinha tido a sorte de o encontrar. Há dias, na Cinemateca Nacional, lembrei-me que ali seria o sítio certo para o procurar, e acertei finalmente.
O autor, João de Mancelos, é professor de Guionismo na Universidade da Beira Interior e de Escrita Criativa na de Aveiro. O livro é claramente baseado na sua extensa experiência como professor e formador nestas áreas.
É um livro pequeno e rápido de ler, mas com um conteúdo muito rico. Os capítulos são breves e claros, bem organizados, focando temas relevantes de guionismo. A linguagem é simples, acessível e num tom bem-humorado, intercalando pequenas estórias pessoais com muitas referências académicas. É uma combinação peculiar entre o pop e o erudito, mas funciona muito bem.
Por exemplo, logo a abrir o livro, o autor recorda uma memória de infância para introduzir uma citação de Salmon Rushdie sobre a dificuldade em separar a verdade da mentira na literatura. Daí parte para Barthes e outros exemplos de como a arte de mentir satisfaz uma necessidade profunda dos seres humanos.
Todo o livro segue nesse registo, recheado de exemplos retirados da literatura e do cinema clássico e contemporâneo. O autor também é pródigo em anedotas, dicas, sugestões e até exercícios, nascidos na sua experiência como professor, bem exemplificados no capítulo Como fazer a vida negra ao protagonista.
Aí começa por afirmar que “A missão principal de um guionista é simples: fazer a vida negra ao herói, contrariá-lo, colocar-lhe entraves, esmagá-lo com surpresas desagradáveis” e termina com um exercício simples: “Proponho-lhe que identifique o tipo de conflito que existe no seu guião. Depois, veja pelo menos dois filmes que tirem partido deste tipo de imbróglio. Como se constrói o suspense? E que efeito tem o conflito nos personagens?”
O Manual de Guionismo não é um livro dogmático, com uma fórmula que força determinados métodos ou abordagens, mas faz uma introdução sucinta às principais teorias da dramaturgia, hoje quase universalmente aceites, como aviagem do herói ou o paradigma.
João de Mancelos termina o seu livro com um curioso making of em que explica o processo de criação da obra e deixa explícita a sua intenção ao escrevê-la: “Este Manual de Guionismo teve por objetivo ajudá-lo a desenvolver as as suas capacidades, através da partilha de estratégias simples, mas eficazes, para construir uma intriga, que sirva de base a um bom filme.”
Conclusão
O Manual de Guionismo de João de Mancelos é um livro pensado para as necessidades dos estudantes de um nível introdutório, mas inclui suficientes gemas para interessar também aos mais praticantes mais avançados, ou a qualquer pessoa que goste de cinema em geral. Como tal, é uma adição interessante para todas as bibliotecas. João Nunes