VAMOS ESTAR SEM ATIVIDADE ATÉ AO FINAL DO PRESENTE MÊS.
BOAS FÉRIAS, PARA TODOS.
domingo, 2 de agosto de 2015
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De anónimo nas trincheiras a herói nacional, a história de Aníbal Milhais, o soldado Milhões.
Na Batalha de La Lys, o soldado Milhões ficou para trás e cobriu a
retirada dos camaradas. Durante vários dias vagueou por trincheiras e
descampados, sobrevivendo graças à sua metralhadora e a um pacote de
amêndoas da Páscoa. Ao regressar ao acampamento, depois de salvar civis e
matar militares alemães, foi recebido como um herói. Porém, no regresso
a casa, cai no esquecimento, apesar de ter recebido a mais alta
condecoração. Só anos mais tarde, o regime decide fazer dele um símbolo
do amor à pátria…
«A história do Milhões tem qualquer coisa de
conto de fadas. Quando o seu filhito tiver idade de ouvir histórias, se
alguém o tomar sobre os joelhos e lhe contar a de seu pai, o pequeno tem
de abrir uns grandes olhos, como se lhe relatassem o caso do Grão de
Milho ou da Gata Borralheira.» André Brun in “Diário de Lisboa” (1924)
«Aníbal Augusto Milhais, o conhecido “Milhões”, nasceu em 9 de Julho de
1895 e faleceu em 3 de Junho de 1970. Ainda não tinha 22 anos na data
em que embarcou para a Flandres, incorporando o Corpo Expedicionário
Português (CEP), no final de Maio de 1917, como militar do Regimento de
Infantaria 19.
Vindo de Valongo (a que mais tarde se juntou “de
Milhais” em sua honra), no concelho de Murça, Aníbal Augusto fazia parte
do grande grupo de incorporados que nunca saíra do seu torrão. Muito
saberia da vida, mas não conseguia adivinhar que, com o passar dos
tempos, o seu nome viraria lenda, o seu rosto de herói desafiaria a
memória numa praça da sua sede de concelho e a sua vida seria
resguardada numa biografia publicada no primeiro ano do centenário da
Grande Guerra, aquela em que ele se expôs diariamente à fortuna e de
onde conseguiu regressar, contrariamente ao que foi o fado de camaradas
de armas e de amigos e vizinhos.
Francisco Galope, jornalista,
encontrou-se com a narrativa do soldado “Milhões” em 2008, quando
preparava uma reportagem com informação de carácter histórico para a
revista “Visão – História”, para um número que assinalaria os 90 anos do
fim da Grande Guerra e da assinatura do Tratado de Versalhes. Mas a
descoberta pedia mais do que uma reportagem e, cinco anos depois dessa
publicação, Francisco Galope apresenta a biografia de Aníbal Augusto
Milhais, o “Milhões” da lenda, sob o título “O herói português da I
Guerra Mundial”.
Curiosamente, a forma de Aníbal Augusto ter
ascendido ao lugar de herói ficou a dever-se a um jornal, o “Diário de
Lisboa”, quando corria o mês de Abril de 1924, que desencantou o
combatente transmontano e o fez andar num périplo que teve vários pontos
altos de reconhecimento e de vivência, como foi, por exemplo, o da
presença na Batalha, quando no dia 9 desse mês ali se procedeu à
inauguração do lampadário junto do túmulo do “soldado desconhecido”
(criado em 1921), homenagem aos caídos na Grande Guerra, em data cara
para Milhais: fora na sequência da sua acção, em 9 de Abril de 1918, ao
defender-se e ao defender muitos dos seus camaradas perante o inimigo
alemão, que ele se tornou numa imagem do heroísmo no campo de batalha.
Posteriormente, o desabafo de um dos seus comandantes, João Maria
Ferreira do Amaral, ao dizer-lhe, num jogo de palavras, que ele ”era
Milhais, mas valia Milhões”, abria-lhe a porta para a memória, de tal
maneira que, no pedestal de Murça, a frase do comandante surge lavrada
em lápide.
Se, em 1921, Menezes Ferreira contou a história heróica
dos soldados portugueses, construindo uma personagem que seria resultado
das vivências de todos eles, na obra “João Ninguém – Soldado da Grande
Guerra” (contendo tanto de épico como de humorístico como de crítico),
se designações como “serrano”, “gambúzio” ou “folgadinho” assentavam na
tipificação do soldado herói português que combateu na Grande Guerra, o
conhecimento de “Milhões” deu um rosto, um corpo e um sentir a esse
herói, várias vezes aclamado, em diversas oportunidades alcandorado a
representante da valentia dos homens do CEP.
Francisco Galope marcou
encontros vários com a memória de “Milhões”, fosse através da leitura
do que disseram os jornais, da consulta ao arquivo da RTP (onde surge
registo de entrevista com o herói de Valongo de Milhais) e nos arquivos
militares, fosse por via de fontes orais de familiares do “Milhões”,
fosse ainda pelo recurso à literatura memorialística portuguesa deste
período (cujos títulos vão sendo referidos ao longo da obra). Todo este
viajar pela pesquisa no sentido de ser reconstituída uma biografia
permitiu ao autor a elaboração de uma tela completa do que pode ter sido
a vida de Aníbal Milhais, sobretudo na experiência na trincheira da
Flandres. Afinal, aquilo por que Milhais passou não terá sido diferente
do que foi vivido pelos outros companheiros conforme registado pelo
memorialismo. Assim, Francisco Galope preenche lacunas, dando a imagem
possível do herói e do seu feito.
O desenvolvimento da narrativa vai
sendo sujeito a reflexão do próprio narrador, que, frequentemente, se
cola ao seu protagonista no sentido de o entender ou de justificar as
suas atitudes, sempre com o objectivo de tornar a narrativa mais viva,
quase como se uma memória se reproduzisse, não esquecendo pormenores
como o da maneira de falar ou o da linguagem utilizada, sobretudo no que
diz respeito a gíria militar, ou mesmo o que advém da possibilidade de
adivinhar o que correria no pensamento do soldado e na sua maneira de
ver o mundo.
Aníbal Milhais não sai endeusado, antes nos é
apresentado um cidadão, que, perante uma experiência rara e intensa, em
que havia a vida para defender, hesita, ganha, perde e luta, não visando
ser herói, mas procurando a sobrevivência, agindo com a naturalidade
que a vida lhe ensinou. Francisco Galope, apesar do título dado ao
livro, é cauteloso no apuramento da verdade em torno do gesto que fez
Milhais subir ao estatuto de “herói” (o que se terá passado em Huit
Maisons em 9 de Abril e nos dias subsequentes), apresentando, no final,
documentos de Ferreira do Amaral e de David Magno, um justificando o
reconhecimento e a atribuição de galardão a Milhais e o outro assumindo
que o feito do soldado transmontano não foi mais glorioso que o de
muitos outros dos seus homens, ainda que reconhecendo Magno que a imagem
do “Milhões” se transformou em “símbolo dos nossos humildes soldados”.
Uma biografia a ler. Porque dá uma imagem do que foi a vida dos
portugueses nas trincheiras, porque recria com base em fontes
importantes um aspecto da participação portuguesa na Flandres, porque,
ainda que falando de um “herói”, o humaniza. E porque, tal como nas
histórias que conhecemos, não ficamos a saber tudo sobre os heróis,
apenas o essencial.» João Reis Ribeiro, blogue Nesta Hora
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