terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

O vocabulário marítimo português, de Ana María Simões da Silva Lopes



«A reedição da minha tese “O Vocabulário Marítimo Português e o Problema dos Mediterraneísmos” em Maio de 2006, depois de ter esgotado a 1ª edição, publicada na Revista Portuguesa de Filologia, Coimbra, com separata de 1975, reacendeu em mim o gosto pelas pesquisas de campo no litoral. As primeiras investigações, fonte deste trabalho, tiveram lugar na década de 60 e tive a sorte, apesar das embarcações tradicionais já desaparecidas, de ainda registar e ter conhecido outras que são completamente desconhecidas ou de que existe apenas um belo exemplar no Museu de Marinha de Lisboa: caso da barca da arte xávega São João Baptista e do calão com cornicho Alcindo Pereira, ambos algarvios, e do barco do mar de quatro remos da costa Norte, da bateira do mar Carlitos, da barca da Nazaré Maria Eulália, do saveiro da Caparica e  da bateira de Buarcos, entre outros.
Como já em 1985, após 20 anos dos primeiros trabalhos “in situ”, havia dado uma volta informal pelo litoral, colhendo imagens e entabulando conversas dirigidas com os pescadores, não seria má ideia pôr pés ao caminho para ver, “claramente visto”, o ocaso das embarcações tradicionais. São intervenções que distam umas das outras 20 anos e permitem tirar algumas conclusões. Se nos anos 60 e 80, era o crepúsculo das embarcações tradicionais, na douta opinião de Octávio Lixa Filgueiras, agora é um ocaso bem escuro e senti que o que havia a fazer era percorrer incessantemente o litoral para recolher um ou outro exemplar, quase todos embarcações miúdas, fotografá-las (é o mínimo que se pode fazer), descrevê-las, medi-las, para que a sua memória perdure e haja elementos para se reconstituírem, se para tal houver interesse. Sobretudo, divulgá-las. Num quotidiano em que as comunidades cada vez mais voltam as costas ao mar, a cultura marítima corre o risco de se perder.
As pequenas embarcações de madeira, já nos anos 80 com popas cortadas para a aplicação de motores fora de borda, ainda reflectiam os materiais de construção autóctone, como as madeiras de pinheiro, de carvalho, de castanheiro e outras, a estopa do calafate, o ferro para reforços, o arame para armadilhas de pesca, o sisal para cabos, a cortiça para bóias, a lona para velas, etc.
Hoje, materiais modernos como o plástico, a esferovite, o nylon, o aço inoxidável, o contraplacado marítimo e a fibra de vidro, para além da motorização sistemática, em detrimento dos remos e da vela, são a realidade com que deparamos e que temos de aceitar, quer gostemos, quer não.
De maneira alguma somos contra a evolução e o progresso, pois a condição de vida da classe piscatória tem de melhorar, de evoluir, as práticas de pesca têm de se modernizar, as condições de segurança de se reforçar e para isso são necessários os vários portos de abrigo que têm vindo a ser construídos ao longo do país, na última década.
Mas lá que a beleza colorida dos areais, a vivacidade e a algazarra das lotas na praia, o alar e o varar tradicionais no areal se foi perdendo, isso é uma verdade.
A substituição de embarcações de madeira por outras de fibra de vidro, mantendo as primeiras válidas sob o ponto de vista cultural, é extremamente difícil, porque a sua substituição legal actualmente exige o abate da primeira por destruição do exemplar em questão. Algumas associações de defesa do património lutam com esse problema. O que nos resta fazer perante este panorama?
Devemos voltar a construir essas embarcações recuperando os modelos, as formas, e as técnicas de construção naval, isto é, as tais réplicas navegantes, como os casos da gamela de Carreço, da catraia de Esposende, da lancha poveira do alto da Póvoa de Varzim, de algumas embarcações do rio Tejo, recuperadas por Câmaras ribeirinhas e do caíque de Olhão recuperado pela Câmara Municipal de Olhão, em 2002?
Devemos musealizá-las, como o caso do Museu Marítimo de Ílhavo com as embarcações da Ria e do Museu de Marinha de Lisboa, para citar dois dos casos que me são mais familiares?
Devemos utilizá-las como elementos decorativos em rotundas ou centros comerciais? Ou simplesmente, devemos estudá-las e divulgá-las?
Presentemente, nesta perspectiva, ainda só consegui revisitar a zona marítima ocidental, de Norte para Sul que vai da Aguda à Praia de Vieira, a costa desde a Caparica a Fonte da Telha e o Algarve na sua totalidade, de Vila Real de Santo António a Sagres e ainda Carrapateira e Arrifana, na costa vicentina.
Já é uma boa fatia do nosso litoral, que tenciono retomar logo que as condições atmosféricas o permitam, para poder constatar o que na realidade se passa.
As embarcações tradicionais portuguesas sempre me apaixonaram e tinha imenso gosto em comparar os anos 1960, 80 e a primeira década do séc. XXI, depois de já ter levado a cabo um confronto inicial com as existências registadas por Baldaque da Silva na magnífica obra “Estado Actual das Pescas em Portugal”, publicada em 1891.»
Dr.ª Ana Maria Lopes, Ílhavo, 5 de Fevereiro de 2007
Texto publicado na Revista da Armada nº 408, Maio 2007

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