O livro de Judite
do Céu Os Serões e as Conversas na Casa do Tio Zé Madruga - Memórias de um
passado recente insere-se neste quadro conceptual. Ao reconstituir um espaço
onde desfilam encenações várias alusivas aos costumes e à cultura das gentes
fozcoenses, a autora optou por conservar a genuinidade das falas, associando-a
à autenticidade de uma forma de relacionamento social, protagonizada por
personagens reais.
Assistimos assim a uma representação ao vivo, em que as
personagens e os acontecimentos nos remetem para um "passado
recente", embora já distanciado da nossa contemporaneidade. Exactamente
por isso, este livro assinala uma viragem de culturas, contribuindo cada
encenação para avivar o álbum de memórias da história do quotidiano em terras
de Foz Côa. O aspecto mais marcante desses quadros é o da linguagem. De imediato
damos conta da notação do registo fónico, que individualiza o falar popular e
regional da região. Estamos perante fenómenos linguísticos que derivam da
transcrição da oralidade, sem filtros nem restauros linguísticos. Por outro
lado, como uma análise filológica, semântica e estilística poderia mostrar,
certos registos vocabulares correspondem a realidades concretas, devendo por
isso ser mantida a dimensão vocabular e a construção sintáctica, aceites como
variedade dialectal. O estranhamento inicial perante a abundância das
transcrições fónicas - sobretudo por parte de uma população mais letrada ou
distanciada da realidade subjacente - é compreensível. Contudo, de forma
intencional, a autora pretendeu que esses vocábulos de grafia
"deturpada" (por isso em itálico) encontrassem, na sua exteriorização
grafemática, a correspondência com a transposição da fala, tal como se
pronuncia(va) na zona onde, digamos, decorre a acção. Neste propósito, Judite
do Céu pode fazer-se acompanhar de conhecidos escritores, os quais, embora de
forma menos recorrente, procuraram reconstituir nas suas narrativas a linguagem
falada pelo povo. Entre outros, exemplifico com Hugo Rocha, Nuno de
Montemor, Virgílio Godinho, ou, noutro patamar, Aquilino Ribeiro. Quando este
último propugnava um "regresso às origens", valorizava precisamente
o falar genuíno e defendia, na vertente da literatura regionalista, que o
idioma se encontrava puro na aldeia, ou seja. no meio rural. Mas nesta matéria
de incidência linguística, teriamos de destrinçar o plano estritamente lexical
do plano fónico. E neste, seria interessante explicara evolução dos diferentes
registos. classificados pelos especialistas com designações específicas como
assimilação/ dissimilação, prótese. metátese. epêntese, aférese, etc. Noutro
plano, importa valorizar a dimensão cultural deste conjunto de narrativas.
Desde a identificação de locais da nossa geografia sentimental, passando pela
referência a topónimos associados a um imaginário colectivo (sejam eles lugares
de culto, de festa ou de folia): desde a captação da vivência da religiosidade
popular à alusão a cenários telúricos, em que "a cultura da terra"
marca o ciclo das colheitas e acentua a dureza, mas também a alacridade, dos
trabalhos agrícolas; desde a descrição de actividades profissionais, onde se
aprende algo sobre o mister de cada artífice, com seus "pesos e
medidas"; desde a genuína "cultura gatronómica" aos rituais
entretanto caídos em desuso; desde a caracterização de passatempos e desportos
populares ao modo de assinalar acontecimentos no calendário concelhio (o
convívio dos "setembristas", por exemplo), até, enfim, à versão
antecipada da descoberta das gravuras rupestres -tudo isso vamos retendo na
leveza do ritmo narrativo, acompanhado por descrições com pinceladas de humor
prazenteiro. Depois, uma análise mais atenta dos textos pode conduzir o leitor
à abordagem de aspectos mais profundos, de repercussões sociais e ideológicas,
manifestadas em questões de índole social, como sejam o relacionamento parental
e interpessoal, os acordos mercantis e salariais, os índices de natalidade ou
de emigração, as superstições e as crenças, a valia da sabedoria proverbial.
etc. Sendo assim, vista a cultura popular como espelho do quotidiano de terras
e gentes, ela possibilita não apenas o conhecimento da História, mas também a
transmissão de particularidades de natureza ..antropológica, psicológica e
sociológica que importa conhecer e estudar. Honrado com o convite para
prefaciar esta colectânea de memórias", proponho, como "filho da
terra", uma incursão pelas histórias desse passado, mais próximo, como se
compreende, da geraçãode meus pais. Mas o livro. como é intenção da autora,
há-de "chegar a todos os recantos onde exista um fozcoense". E serão
estes a passar a palavra. porque através da sua leitura partilham recantos da
memória rediviva. Felicito, pois, a autora por este empreendimento. Neste caso,
como noutros projectos, bem andam as entidades locais quando desafiam a
criatividade cultural e preservam a memória colectiva. Não há cultura sem
tradição. E as terras de Foz Côa, presentes na galeria do "património
mundial", merecem encontrar arautos a pugnar pela divulgação dos seus
pergaminhos históricos.
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